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Rumo ao Estrelato


Olhos grandes. Eu gosto de olhos. Já a névoa. Não. Acho tosca e pouco poética. Mas partes mutiladas me fascinam, assim como um ambiente hospitalar (que por vezes enojam muita gente, mas por alguma razão – a qual não sou capaz de explicar – a mim me dão prazer.

Quando ainda era uma criança, minha mãe costumava dizer: Você não é nada... Menininho apagado. Quando eu tinha sua idade era a estrela da classe.

Pode me ver agora dona Desalma? Continuo apagado pra você?

Sigo firme sabendo que há algo de especial em mim, sempre houve. Mas sabe, pensando bem, por vezes sinto que perdi tempo demais tentando impressionar quem não me valorizou e quem não me amou. Tenho muito medo de ser apenas “mais um na prateleira”.

Será que você seria capaz de entender a mim, um artista incompreendido, cheio de sonhos deixados para trás? Trabalho dia e noite neste hospital, sempre quis ser médico-cirurgião. Foi um sonho de uma vida. E quem sabe um dia escrever um livro ensinando práticas que eu mesmo desenvolvi. Mas enquanto este dia não chega sou apenas o cara que limpa as comadres (todos estão constantemente me lembrando disso). É verdade que os grandes foram sempre incompreendidos em sua própria época – Da Vince, Van Gogh, Charles e tantos outros? É... Talvez seja muita ousadia de minha parte achar que eu seria o único a ser percebido e receber o que mereço no mesmo século no qual vivi.

Tem uma pessoa neste hospital que me trata muitíssimo bem. A família, em sua crueldade, com esta adorável senhora, abandonou-a para apodrecer. Elisabeth é uma mãe de família. Chego a passar horas em seu quarto. Sabe o que ela costumava me dizer? Que gostaria que seus filhos fossem tão carinhosos e inteligentes quanto eu.

Tudo isso me faz refletir. Como podem filhos, abandonar suas próprias mães? Não me perguntem. Mesmo Desalma tendo fraturado mais de 10 dos meus ossos, continuei cuidando dela e honrando-a até que a última luz se apagasse daqueles grandes olhos azuis. Foi a única coisa boa que Desalma me deu. Gosto da cor dos meus olhos.

Hoje concluo a obra de uma vida! E mesmo que eu esteja sorrindo, contente com o resultado, ainda assim estou triste. Estou sempre triste por dentro. Ainda que o resultado da obra seja magnífico.

Sabe, entre um tapa, um murro ou um chute de Desalma, aprendi que nunca é bom ficar sozinho. Pode ser perigoso. Foi aí que descobri que dentro de mim vive um outro. É um monstro lindo, poderoso, que sabe voar e dar vida ao que quiser. Ele só tem um problema: nunca está satisfeito. Afinal, é justo dizer que se parece muito com o ser humano - sonha demais e nunca se satisfaz com nada.

Eu já pensava nesta minha obra prima há uns dias. Contei, é claro, para minha querida Elisabeth e ela me disse que gostaria de me ajudar a alcançar meus objetivos. Nunca, em toda minha vida, tive ajuda de alguém para absolutamente nada. Isso me fez enxergar que já havia passado da hora do meu grand finale e que eu jamais decepcionaria Elisabeth.

Passando o sangue em meu rosto – faço questão de contornar meus olhos – alcanço a representação do brilho (e eu o quero para mim), por isso aposso-me dele. Sorrio. No vidro, o meu reflexo se ilumina no mais contagiante sorriso. Termino de espalhar os pés e as mãos pelo quarto e me deito ao lado de Elisabeth. Viro-me de lado e olho-a nos olhos sussurrando: Obrigado.

Mas assim como no resto da minha vida, sempre vem algo que me leva de volta à lucidez de ser apenas mais um, preso em uma vidinha simples e comum. O que me lembra que nem o meu personagem principal (essa minha estrela), não é grande coisa. Ninguém é. São as pessoas, os outros, que nos olham e decidem que estão apaixonados por nós, tornando-nos quase deuses. Memoráveis e poderosos.

No rosto dessa minha querida personagem, um filete de lágrima, jaz, me mostrando o quanto fui importante para ela. Fui, sim, especial para alguém. Ainda que não tenha sido para Desalma.

Agora, tranquilo, continuo ao lado de meu cadáver estrela, onde ficamos esperando até que os que se importam venham por nós. Rumo ao estrelato.

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